Leia a íntegra da palestra da Prof.
Marilena Chauí no Seminário Temático "Representação Política e
Enfrentamento ao Racismo", realizado em Salvador (BA), em 19 de abril,
no contexto das preparações para a III Conferência Nacional de Promoção
da Igualdade Racial - a III CONAPIR
Salvador foi a primeira capital fora de Brasília a sediar
os Seminários Temáticos que integraram a programação comemorativa de
dez anos de criação da SEPPIR e etapa preparatória para a III
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial – III CONAPIR, que
acontece de 5 a 7 de novembro, em Brasília, com o tema Democracia e
Desenvolvimento Sem Racismo: por um Brasil Afirmativo.Marilena Chauí, professora doutora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), foi palestrante no evento sobre o tema Representação Política e Enfrentamento ao Racismo. O conteúdo da palestra segue abaixo. Em breve, serão divulgados os vídeos do evento de Salvador e conteúdos dos outros seminários.
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"Bom
dia a todas e a todas, eu agradeço muito esse convite que para mim faz
muito sentido além de muito prazer, porque resgata as minhas próprias
origens, a minha mãe e a família da minha mãe é da Bahia, são baianos.
Eu parti do principio de que a minha contribuição não seria a de fazer
propostas políticas, embora lá no final eu vá fazer algumas pequenas
propostas, mas eu imaginei que o convite era mais para que eu
contribuísse com uma reflexão sobre alguns assuntos, alguns conceitos
que pudessem auxiliar na formulação de políticas. Então para minha
apresentação eu escolhi como tema a questão da violência, do racismo e
da democracia.
Eu
dividi a minha fala em cinco partes. A primeira é a respeito de ética,
violência e racismo; a segunda é sobre o mito da não violência
brasileira; a terceira é sobre o que seria uma sociedade democrática; a
quarta as modificações da estrutura social do Brasil a partir das
políticas sociais dos últimos 13 anos; e depois uma propostazinha para
finalizar.
Ética, violência e racismo
Em
uma perspectiva geral, nós podemos dizer que a ética define a figura do
agente ético e das suas ações e o conjunto de noções ou de valores que
balizam o campo de uma ação para que ela seja considerada ética. O
agente ético é definido como um sujeito ético, isto é, como um ser
racional, consciente, que sabe o que faz. Como um ser livre, que decide e
escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde por aquilo
que faz.
A ação
ética, por sua vez, é balizada pelas ideias de bom ou mal, justo ou
injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar
de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas
que propõe sempre uma diferença intrínseca entre condutas segundo o Bem,
a Justiça e a Virtude. Assim, uma ação só será ética se for consciente,
livre e responsável. Só será virtuosa se for realizada em conformidade
com o bom e o justo. E a ação ética só é virtuosa se for livre, e só
será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior
ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando, ou
a uma pressão externos. Enfim, a ação só ética se realizar a natureza
racional, livre e responsável do agente, e se o agente respeitar a
racionalidade, a liberdade e a responsabilidade dos outros agentes, de
sorte que a subjetividade ética é sempre uma intersubjetividade. A ética
não é um estoque de condutas, e sim uma praxis que só existe pela ação
dos sujeitos individuais e sociais e na ação deles, definidos por formas
de sociabilidade que são instituídas pela própria ação humana em
condições históricas materiais determinadas.
A
ética, portanto, como nós acabamos de apresentá-la, se opõe
evidentemente à violência. Violência é uma palavra do latim e que
significa, primeiro: tudo o que age usando a força para ir contra a
natureza de alguém, violência significa desnaturar. Segundo, todo ato de
força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém.
Violência significa coagir, constranger, torturar, brutalizar. Em
terceiro, todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa
valorizada positivamente por uma sociedade. Violência significa violar.
Quarto, todo ato de transgressão contra aquelas coisas ou ações que
alguém ou alguma sociedade define como justas e como um direito. Quinto,
violência é um ato de brutalidade, sevícia, abuso físico e psíquico
contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e relações sociais
definidas pela opressão, intimidação, medo e terror. A violência se opõe
à ética, porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de
linguagens e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais,
insensíveis, mudos, inertes, passivos.
Na
medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional,
voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de
razão, de vontade, de liberdade e de responsabilidade é tratá-lo como
não humano, portanto tratá-lo violando sua natureza, fazendo-lhe
violência nos cinco sentidos que demos a essa palavra. É sob esse
aspecto, entre outros evidentemente, que o racismo é violência fundada
na naturalização das diferenças e na legitimação da exclusão e do
extermínio dos diferentes, postos como inferiores. O racismo é uma
crença fundada em uma hierarquia entre raças. É uma doutrina baseada no
direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais, e
ele é um sistema político. Então ele é uma crença, uma doutrina, e ele é
um sistema político fundado na extrema hostilidade contra os que são
postos como inferiores levando a leis de discriminação, leis de
separação ou apartamento total, o apartheid, e de legitimação e
destruição física dessas pessoas, isto é, o genocídio.
Para
entendermos o modo de funcionamento do racismo precisamos recordar
alguns dos sentidos da palavra representação. Essa palavra, que
significa estar no lugar de um outro, possui três sentidos principais. O
primeiro, que se encontra na própria origem do seu uso, é o sentido
jurídico, isto é, desde Roma, é o advogado que se apresenta em nome de
um acusado e fala em seu nome. O segundo sentido é teatral, referindo-se
ao ator que se apresenta no lugar da personagem, fala por ela e como
ela. O terceiro sentido é derivado dos dois primeiros, isto é, é o
sentido político, refere-se àquele que é escolhido para representar
publicamente a vontade, os interesses e os direitos de um outro do qual
recebeu o mandato para falar no seu nome. O núcleo do lugar da
representação é, portanto, estar no lugar de um outro e falar em nome
desse outro.
Ora, o
pensamento crítico moderno mostra o que acontece com a ideia da
representação nas sociedades fundadas na divisão social das classes. Ela
serve para que a classe dominante de uma sociedade ofereça uma imagem
dos dominados por meio da qual ela o define como o seu outro e o
constrói como naturalmente inferior. Dessa construção resultam dois
efeitos políticos. No primeiro, o outro é definido racialmente como
inferior, posto desprovido de pensamento, voz e vontade, precisando por
isso que a classe dominante ocupe o lugar desses inferiores e fale no
seu nome, ou seja, a representação é usada para legitimar a exclusão
racial no espaço público. Quero frisar porque estamos lutando pela
representação, é preciso lembrar que a classe dominante manipula a noção
de representação para produzir a exclusão. Em segundo lugar, a classe
dominante considera este que é inferior como um perigo, isso por isso
ela legitima o seu extermínio. Então nós precisamos lidar com todas as
contradições da representação, porque a noção de representação em uma
sociedade racista e dividida em classes legitima o racismo, a opressão, a
exclusão, e o extermínio. Nós temos que desconstruir a noção dominante
de representação e criar uma outra, senão não faz sentido nós irmos para
o espaço público com a mesma ideia de representação, que é aquela que
nos sufoca.
No caso
do Brasil esse dois efeitos se encontram presentes, mas eles são
sistematicamente ocultados por um mito, o mito da não violência
brasileira, que permite afirmar que não há racismo no Brasil. Por isso é
necessário examinar, ainda que brevemente, a representação imaginária
que sustenta o mito da não violência brasileira. Passo então ao meu
segundo tópico, o mito da não violência.
Mito da não violência
Por
que mito? Primeiro porque um mito opera com antinomias, tensões e
contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação
da sociedade no seu todo, e que por isso são transferidos de uma
solução imaginária que torna suportável e justificável a realidade tal
como ela é. Um mito nega e justifica a realidade negada por ele.
Segundo, um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas em um
grau tal que não são percebidas como crenças, mas tidas não só como uma
explicação da realidade, mas como a própria realidade. Um mito substitui
a realidade pela representação imaginária e torna invisível a realidade
existente. Terceiro, um mito resulta de ações sociais e produz como
resultado outras ações sociais que o confirmam, isso é, um mito produz
valores, ideias, comportamentos e práticas que o reiteram pela ação da
sociedade. Um mito não é um simples pensamento, mas uma forma de ação.
A
mitologia da não violência brasileira opera alguns mecanismos
ideológicos que garantem a sua conservação, mesmo contra todos os dados
factuais contra ela. O primeiro mecanismo é o da exclusão. Afirma-se que
a nação brasileira é não violenta e, se houver violência, ela é
praticada por gente que não faz parte da Nação, mesmo que tenha nascido e
viva no Brasil. O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um
“nós brasileiros não violentos” e “eles não brasileiros” violentos, eles
não fazem parte de nós.
O
segundo é o mecanismo da distinção. Distinguisse o essencial do
acidental, isto é, por essência os brasileiros não são violentos e,
portanto a violência, quando ela existe, é acidental, é um acontecimento
efêmero, passageiro e por isso se diz que uma epidemia de violência, um
surto de violência, que está cristalizado na superfície de um tempo e
de uma espaço definidos, ela é vista como superável e ela deixa intacta a
nossa essência não violenta.
O
terceiro mecanismo é jurídico, a violência fica circunscrita ao campo
da delinquência e da criminalidade, e o crime é definido como ataque à
propriedade privada, o furto, o roubo, latrocínio. Esse mecanismo
jurídico permite de um lado determinar quem são os agentes violentos, em
função dos mecanismos anteriores, da exclusão e da distinção, os
agentes violentos são os pobres, e entre os pobres, evidentemente, os
negros, e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, e em
particular contra os negros. A ação policial pode ser às vezes
considerada violenta, ela recebe o nome de chacina, massacre quando de
uma só vez e sem motivo o número de assassinados é elevado. No restante
das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural,
uma vez que ele protege o “nós não violentos” contra o “eles
violentos”.
Finalmente
o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de
máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores
violentos como se fossem não violentos. Assim, por exemplo, o machismo é
colocado como proteção à natural fragilidade feminina – proteção que
inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas delas
próprias, pois como todos sabem o estupro é um ato feminino de
provocação e sedução. O paternalismo branco é visto como proteção para
auxiliar a naturalidade e indolência dos negros, os quais, como todos
sabem são incapazes e incompetentes.
O
exemplo luminoso desse mecanismo de inversão tem sido a reação de uma
parte da sociedade ao PROUNI, ao ENEM, às cotas. Antes de prosseguir eu
quero contar para vocês um episódio. Eu tenho uma parente (todo mundo
sempre tem um parente, né?) que ligou para mim há mais ou menos um mês:
“Marilena, você não sabe o que aconteceu, o que está acontecendo”, eu
disse, “Aparecida, o que é?”, [Ela disse] “Você não sabe, o Governo
acaba de introduzir o racismo no Brasil”, e eu disse “É mesmo,
Aparecida, e como foi isso?”, [Ela] “Ah, PROUNI, ENEM, cotas, vai ser a
opressão dos estudantes brancos, vai ser opressão nossa, o Governo está
introduzindo o racismo no Brasil”. Então esse é um típico mecanismo de
exercício da violência através da inversão do real. Muitos dizem que se
trata da opressão racial contra os brancos, e no momento de entrada da
universidade trata-se do estímulo ao ódio contra os negros durante a sua
permanência universitária, em suma, o PROUNI, o ENEM, as cota, seria,
como disse a minha parenta, a criação do racismo no Brasil.
Em
resumo, no Brasil a violência não é percebida ali mesmo onde ela se
origina, ali mesmo onde ela se define como propriamente dita, isto é
como toda prática e toda ideia reduz um sujeito à condição de coisa que
viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações
sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do
isso, a sociedade não percebe que as próprias explicações que ela
oferece para violência são violentas, porque ela está cega ao lugar
efetivo da produção da violência. Isto é, a estrutura da sociedade
brasileira, que em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o
mito da não violência.
Conservando
as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é
denominada pelo predomínio do espaço privado, portanto os interesses
econômicos, sobre o espaço público, e tendo no centro a hierarquia
familiar, a sociedade é fortemente hierarquizada em todos os seus
aspectos. Nela, as relações sociais intersubjetivas são sempre
realizadas como relação entre um superior que manda e um inferior que
obedece (Sabe com quem está falando?). As diferenças e assimetrias são
sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando
obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito, nem como sujeito
de direitos, e jamais é reconhecido como subjetividade e alteridade. As
relações entre os que se julgam iguais são de parentesco, de compadrio,
isto é, de cumplicidade. E entre aqueles que são vistos como desiguais, o
relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da cooptação, e
quando a desigualdade é muito marcada assume pura e simplesmente a forma
da opressão.
Assim
a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo
que a naturalização das diferenças étnicas, consideradas desigualdades
raciais entre superiores e inferiores, desigualdades religiosas e de
gênero, assim como naturalização de todas as formas visíveis e
invisíveis da violência. Nós podemos resumir simplificadamente os
principais traços da nossa violência social, considerando a sociedade
brasileira oligárquica, autoritária, vertical, polarizada entre a
carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição dos
direitos civis, econômicos, sociais e culturais.
Nossa
sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita, o senhor
(de escravos) cidadão, e concebe a cidadania como privilégio de classe,
fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes
sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o
decidirem. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos
em lugar de aparecerem conquistas dos movimentos sociais e populares
organizados, são sempre apresentados como concessão ou outorga feitas
pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante.
Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais pessoais são
imediatamente transformadas em desigualdades naturais, que permitem a
legitimidade da hierarquia de mando e obediência. Na nossa sociedade as
leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor
instrumento para repressão e a opressão, jamais definindo direitos e
deveres concretos e compreensíveis para todos. Toda essa situação é
claramente reconhecida pelos trabalhadores quando eles afirmam que a
justiça só existe para os ricos.
O
poder judiciário é claramente reconhecido como distante, secreto,
representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da
generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio, para as
camadas populares, repressão. A lei não figura o polo público do poder e
da regulação dos conflitos, não define direitos e deveres dos cidadãos,
porque em nosso país a tarefa é da lei é a conservação de privilégios e
o exercício da repressão. Por esse motivo, as leis aparecem como
inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e
não para serem transformadas. Situação violenta que é miticamente
transformada em um traço positivo quando a transgressão é elogiada como o
jeitinho brasileiro. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados
das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística
na qual a relação é de tutela e de favor, isto é, os interesses
econômicos dos dominantes. A indistinção entre o público e o privado é a
estrutura mesma do campo social e do campo político. É uma sociedade
que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão de
interesses e grupos, classes sociais diferenciadios e antagônicas. Esse
bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas é um conjunto de ações
determinadas que se traduzem em uma maneira determinada de lidar com a
esfera da opinião.
Os
meios de comunicação monopolizam a informação e o consenso é confundido
com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância,
atraso e perigo. É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação
explícita de contradições, justamente porque leva as desigualdades
sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta sequer através da
chamada rotinização dos conflitos de interesses (que é como opera na
democracia liberal). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o seu
horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão nacional e
da união nacional a qualquer preço, por isso ela recusa perceber e
trabalhar os conflitos e as contradições sociais, econômicas e políticas
enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem
mítica da boa sociedade indivisa, una, pacífica, ordeira e generosa, que
não conhece violência.
Contradições
e conflitos não são ignorados, eles recebem uma significação precisa,
eles são considerados sinônimos de perigo, crise, desordem e a eles se
oferece uma única resposta: a repressão policial e militar. A sociedade
brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas
populares e o privilegio absoluto das camadas dominantes e dirigentes,
bloqueando a instituição e agora a consolidação da democracia.
A democracia e criação de direitos
Uma
sociedade – e não apenas uma forma de Governo de Estado – é democrática
quando institui algo profundo que é condição do próprio regime
político. Ou seja, quando institui direitos. Essa instituição de
direitos é uma criação social, de tal maneira que a atividade
democrática realiza-se socialmente como luta social, e politicamente
como um contrapoder social que determina, dirige, controla, limita,
modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de
direitos e de criação de direitos a democracia está apta a
diferenciá-los de privilégio e carências.
Um
privilégio é por definição algo particular, que não pode generalizar-se
em um interesse, nem universalizar-se num direito, sem deixar de ser
privilégio. Uma carência é uma falta, também particular ou específica,
que desemboca em uma demanda também particular ou específica, não
conseguindo generalizar-se num interesse comum, nem universalizar-se em
um direito. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é
particular nem específico, ele é geral e universal. Universal, seja
porque ele é o mesmo válido para todos os indivíduos, grupos e classes
sociais, seja porque, embora diferenciado, ele é reconhecido como um
direito por todos, como é o caso dos chamados direitos das minorias.
Uma
das práticas mais importantes da políticas democrática consiste
justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a
particularidade das carências para que se tornem os interesses comuns e,
graças a essa generalidade dos interesses, fazer com que elas alcancem a
esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e
carências determinam a desigualdade econômica, social e política,
contrariando o principio democrático da igualdade, de sorte que a
passagem das carências dispersas a interesses comuns e dos interesses
comuns a direitos é a luta pela igualdade.
Avaliamos
o alcance da cidadania popular quando ela tem força para desfazer
privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque
os faz perder a legitimidade diante dos direitos. E também quando tem
força para fazer as carências passarem a condição à condição de
interesses comuns e, desses, a direitos universais. O que caracteriza a
democracia, retomando o que disse Valdir Pires, é que a democracia é o
único regime político e a única forma social verdadeiramente histórica,
ou seja, ela está aberta ao tempo, e ela está aberta ao tempo porque ela
se define pela criação de novos direitos. Então, na medida em que a
democracia é o processo contínuo de criação de novos direitos, ela é uma
sociedade temporal e uma política temporal ou histórica no sentido
forte da palavra.
Modificações da estrutura social do Brasil
Eu
passo então para o que aconteceu conosco nesse processo de consolidação
democrática e o surgimento, todo mundo diz que surgiu uma nova classe
média. Meu combate, meu embate, a minha luta é dizer que surgiu uma nova
classe trabalhadora e não uma classe média.
Estudos,
pesquisas e análises mostram que houve uma mudança profunda na
composição da sociedade brasileira, graças aos programas governamentais
de transferência de renda, inclusão social e erradicação da pobreza, à
política econômica de pleno emprego e elevação de salário mínimo, a
recuperação de parte dos direitos sociais das classes populares,
sobretudo alimentação, saúde, educação e moradia, à articulação desses
programas com o principio da igualdade social e o principio do
desenvolvimento sustentável e aos primeiros passos de uma possível
reforma agrária que permitam as populações do campo não recorrer à
migração forçada em direção aos centros urbanos.
De
modo geral, utilizando a classificação dos Institutos de Pesquisa de
Mercado e da Sociologia de origem Norte-Americana, costuma-se organizar a
sociedade em uma pirâmide seccionada em classes designadas como A, B,
C, D e E, tomando como critério a renda, a propriedade de bens móveis e
imóveis, a escolaridade e a ocupação ou profissão. Por esse critério
chegou-se a conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes D e E
diminuíram consideravelmente, passando de 26,2 milhões de pessoas a 63,5
milhões. Também no topo da pirâmide, houve crescimento das classes A e
B, que passaram de 13,3 milhões de pessoas a 22,5 milhões. Mas a
expressão verdadeiramente espetacular ocorreu na classe C, que passou de
65,8 milhões de pessoas a 105,4 milhões.
Essa
expansão tem levado à afirmação de que cresceu a classe média
brasileira, ou melhor, que teria surgido uma nova classe média no país.
Sabemos, entretanto, que há uma outra maneira de analisar a divisão
social das classes, tomando como critério a forma da propriedade. No
modo de produção capitalista, a classe dominante é proprietária privada
dos meios sociais de produção, o capital produtivo e capital financeiro.
A classe trabalhadora, excluída desses meios de produção e neles
incluída como força produtiva, é “proprietária” das forças de trabalho
vendida e comprada sob a forma do salário.
Marx
falava em pequena burguesia para indicar uma classe social que não se
situava nos dois pólos da divisão social constituinte do modo de
produção capitalista. Ele usava essa expressão para indicar, por um
lado, a proximidade dessa classe do ponto de vista social e ideológico,
com a burguesia e não com os trabalhadores. E por outro lado ele usava
essa expressão para indicar que, embora ela não fosse proprietária
privada dos meios sociais de produção, ela poderia ser proprietária
privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, ela se encontra fora do
núcleo central do capitalismo por não ser detentora do capital e dos
meios sociais de produção e não ser detentora da força de trabalho que
produz capital. Ela se situava, tempos atrás, nas chamadas profissões
liberais, na burocracia estatal ou serviços públicos, na burocracia
empresarial, a gerência, na pequena propriedade fundiária e no pequeno
comércio.
É a
sociologia – sobretudo de inspiração estadunidense – que introduz a
noção de classe média para designar do setor socioeconômico, empregando
os critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo (não entra o
critério de propriedade, se entrasse o critério da propriedade essa
classificação estaria perdida). Produzindo assim as pirâmides das
classes A, B, C, D e E, e a célebre ideia da mobilidade social para
descrever a passagem de uma classe de um individua para outra. Se
abandonarmos a descrição sociológica, se ficarmos com a constituição das
classes sociais no modo de produção capitalista, e se considerarmos as
pesquisas atuais e os números que elas apresentam relativos à diminuição
e o aumento do contingente nas três classes sociais, nós poderemos
chegar a algumas conclusões.
Primeiro,
os projetos e programas de transferências de renda e garantia de
direitos sociais – educação, saúde, moradia, alimentação – e econômicos –
o aumento do salário mínimo, de pleno emprego, reforma agrária,
cooperativas da economia solidária, etc. – indicam que o cresceu no
Brasil foi a classe trabalhadora, cuja composição, entretanto, é
complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e
agrícolas, porque a classe trabalhadora a partir da economia neoliberal
não se situa apenas no campo do trabalho industrial. Esse é um ponto
decisivo. Se a gente não levar em conta a modificação que a economia
neoliberal produziu na economia, ao fragmentar a produção econômica,
dispersá-la através do planeta inteiro e reuni-la apenas no momento
final de montagem e consumo e, portanto desfazer as formas clássicas da
classe trabalhadora, nós não vamos entender por que tem uma nova classe
trabalhadora. Por exemplo, além da fragmentação que leva, por exemplo, a
um crescimento, em determinados pontos do planeta, da economia
familiar.
Um outro
elemento é a terceirização, isto é, uma série de atividades que faziam
parte da grande planta industrial fordista, deixaram de fazer parte
dessa grande planta e foram terceirizadas. Em uma classificação anterior
nós chamaríamos todos esse trabalhadores de trabalhadores a indústria. É
porque terceirizou que nós dizemos que eles não estão na indústria, mas
eles estão na indústria, eles são um ramo da indústria. Então a um
conjunto de equívocos, sobretudo de tipo sociológico e econômico, que
não permite compreender que tem, no mundo inteiro, não é só no Brasil,
uma nova classe trabalhadora heterogênea, complexa, e que nós conhecemos
muito mal por enquanto.
Em
outras palavras, o crescimento de assalariados no setor dos serviços
não é crescimento da classe média, e sim crescimento de uma nova classe
trabalhadora heterogênea definida por diferenças de escolaridade,
habilidades e competências, que foram determinadas pela tecnociência.
Mas a tecnociência é a grande força produtiva.
Eu
sei que os intelectuais e cientistas ficam muito desesperados com essa
ideia, porque eles sempre acharam que, se eram de esquerda, que eles se
aliavam a trabalhadores, mas eles próprios não pertenciam à classe
trabalhadora. Agora não tem jeito, a partir do momento em que a ciência e
a tecnologia se tornaram força produtiva, os intelectuais e os
cientistas são trabalhadores. Eles vão esbravejar, vociferar, eles vão
ficar tristes, mas são parte constitutiva da classe trabalhadora. Eles
estão fazendo acumulação de capital. Então [usar o] setor de serviço
para definir classe média já era, não define mais, porque mudou o
sentido do setor de serviços.
Então
de fato, no capitalismo industrial, as ciências – ainda que algumas
delas fossem autônomas, fossem financiadas pelo capital – se realizavam
em sua maioria em pesquisas autônomas, cujos resultados poderiam levar a
tecnologias aplicadas pelo capital na produção econômica. Essa situação
significava que cientistas e técnicos pertenciam à classe média. Hoje,
porém, as ciências e as técnicas se tornaram-se parte essencial da
acumulação do capital, se tornaram as principais forças produtivas, e
por isso cientista e técnicos passaram da classe média à classe
trabalhadora como produtores de bens e serviços articulados à relação
entre o capital e a tecnociência. Dessa maneira, renda, propriedade
escolaridade não são critérios para distinguir entre os membros da
classe trabalhadora e da classe média. De modo geral os da classe
trabalhadora são muito mais sabidos, mais escolarizados do que a classe
média que continua ignorante, que é a sua marca fundamental.
Terceiro,
o critério da profissão liberal também se tornou problemático para
definir a classe média, uma vez que a nova forma do capital levou à
formação de grandes empresas de saúde, advocacia, comunicação, educação,
alimentação, de maneira que seus componentes se dividem entre os
proprietários privados dessas empresas e os assalariados delas, os
advogados, os médicos, que devem ser colocados – mesmo que eles
vociferem contra isso – na classe trabalhadora.
Quatro,
a figura da pequena propriedade particular também não é critério para
definir a classe média, porque a economia neoliberal, ao desmontar o
modelo fordista – ao fragmentar e terceirizar o trabalho produtivo em
milhares de microempresas, grande parte delas familiares, dependentes do
capital transnacional – transformou esses pequenos empresários em força
produtiva que, juntamente com os prestadores individuais de serviços –
seja na condição de trabalhadores precários, seja na condição de
trabalhadores informais –, é dirigida e dominada pelos oligopólios
multinacionais. Em suma, os transformou em uma parte da nova classe
trabalhadora mundial. Restaram, portanto, para classe media as
burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, a pequena
propriedade fundiária e o pequeno comércio não filiado às grandes redes
de oligopólios transnacionais.
No
Brasil, a classe média se beneficiou com as políticas sociais dos
últimos dez anos. Ela também cresceu, prosperou, mas não há uma nova
classe média no Brasil. Diremos que a nova classe trabalhadora
brasileira começa finalmente a ter acesso aos direitos sociais e a se
tornar participante ativa do consumo de massa. Como a tradição
autoritária da sociedade brasileira não pode admitir a existência de uma
classe trabalhadora que não seja substituída pelas miseráveis classes
deserdados da terra, os pobres desnutridos, analfabetos e incompetentes,
imediatamente passou a afirmar que existia uma nova classe média, pois é
menos perigoso para a ordem estabelecida dizer isso do que admitir que
uma nova classe trabalhadora surgiu como protagonista social e político.
Por
mais que no Brasil as políticas econômicas e sociais tenham avançado em
direção à democracia, as condições impostas pela economia neoliberal
determinaram como vimos a difusão por toda sociedade da ideia da
racionalidade do mercado como competição e promessa de sucesso. Visto
que a nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior
desse momento neoliberal do capitalismo, marcado pela fragmentação e
dispersão do trabalho produtivo, da terceirização, precariedade e
informalidade do trabalho, percebido como prestação de serviço de
indivíduos independentes que se relacionam com outros indivíduos
independentes na esfera do mercado de bens e serviços, essa nova classe
trabalhadora por isso se torna propensa a aderir ao individualismo
competitivo e agressivo difundido pela ideologia da classe média. Em
outras palavras, essa nova classe trabalhadora tende a aderir ao modo de
aparecer do social que aparece como conjunto heterogêneo de indivíduos
de interesses particulares em competição.
Ela
própria, a classe trabalhadora, tende a acreditar que faz ela parte de
uma nova classe média brasileira. À guisa de conclusão, se a política
democrática corresponde a uma sociedade democrática e se no Brasil a
sociedade é violenta, autoritária, hierárquica, vertical, oligárquica,
marcada pelos preconceitos étnicos e de classe, polarizada entre a
carência e o privilégio, só será possível dar continuidade a uma
política democrática enfrentando essa estrutura social.
Propostas
A
ideia de inclusão social não é suficiente para derrubar essa estrutura
social e a polarização carência/privilégio. A polarização só pode ser
enfrentada se o racismo e o privilégio de classe forem enfrentados. E
eles só serão enfrentados, creio eu, por meio de quatro grandes ações
políticas: 1. A reforma tributária, que opere sobre a vergonhosa
concentração da renda e faça o Estado passar da política de
transferência de renda para distribuição e redistribuição da renda. 2. A
reforma política, que dê uma dimensão republicana às instituições
públicas e permita redefinir o sentido público da representação. 3. A
reforma social, que consolide o Estado de Bem-Estar social com uma
política de Estado e não como um programa de Governo. 4. E uma política
de cidadania cultural que comece pela educação e alcance o conjunto das
artes de maneira a desmontar o imaginário autoritário, quebrando o
monopólio da classe dominante sobre a esfera dos bens simbólicos e a sua
difusão, e quebrando a sua conservação por meio da classe média.
Mas
a ação do Estado só pode ir até esse ponto. O restante, para construção
de uma sociedade democrática, igualitária e sem racismo só pode ser a
praxis dos movimentos sociais e populares organizados como sujeito de
sua ação, isto é, como autênticos representantes de suas demandas,
reivindicações e direitos. Obrigada!"
Professora Doutora Marilena Chauí, da Universidade de São Paulo
Fonte: SEPPIR
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